sábado, junho 30, 2007

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro II


[…] Na minha psicologia deveras emeandrada há coisas interessantes que lhe detalharei de vez em quando, muito por alto, em paga dos seus estudos. Olhe, por exemplo: a impossibilidade de renúncia. Escute:Eu decido correr a uma provável desilusão. E uma manhã, recebo na alma mais uma vergastada - prova real dessa desilusão. Era o momento de recuar. Mas eu não recuo. Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída. E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!… Há na minha vida um bem lamentável episódio que só se explica assim. Aqueles que o conhecem, no momento que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável. Mas não era, não era. É que eu se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim. Porque - coisa estranha! - sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado. Eu sou daqueles que vão até ao fim. Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa. Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo. E coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim. Mas ninguém as compreende. Ou tão raros…

Se fui levado a estas divagações é que presentemente numa circunstância análoga me encontro. Lancei-me na carreira a uma ilusão dourada - pobre ilusão! - Ela podia entretanto ser uma realidade. Mas antes de ontem lá recebi, mais uma vez, a vergastada na alma. E continuo a correr…

Depois sinto-me tão pequeno, tão fraco, tão pouca coisa…

E sempre um calafrio na espinha, arrepiante, estirilizante…

E é nestes momentos ainda assim que - ó miséria! - encontro um pouco de cor-de-rosa na vida… […]

[De uma carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa
(Paris, 21 de Janeiro de 1913).]

- Quasi -
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de asul - eu era alem.
Para atingir faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquem…
Assombro ou paz? Em vão… tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quasi vivido…
Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim, quasi a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo… e tudo errou…
- Ai a dôr de ser-quasi, dôr sem fim… -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não vôou…
Momentos d’alma que desbaratei..
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ansias que foram mas que não fixei…
Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d’heroe, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipicios…
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…
……………………………….
Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de asul - e fôra alem!
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquem…
{Paris, 14 de Maio de 1913}


Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, incluída no livro “Mário de Sá-Carneiro Correspondência com Fernando Pessoa (Volume I)” ed. de Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Relógio d’Água, 2003.

Fernando Pessoa.

Foto de Vitorino Braga.

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