sábado, junho 30, 2007

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro 1


Mário de Sá-Carneiro-Correspondência com Fernando Pessoa

Paris 16 Novembro 1912

Meu caro amigo

Com péssima disposição de espírito e num dia chuvoso, enervado, escuro como breu venho responder-lhe à sua longa carta. Começo por lhe pedir perdão de em troca lhe enviar poucas linhas - “poucas e mal alinhavanhadas linhas” lugar-comum que, neste caso, exprime bem a verdade.Não tenho de forma alguma passado feliz nesta terra ideal. Tenho mesmo vivido ultimamente alguns dos dias piores da minha vida. Porquê? indigará você. Por alguma coisa- é a minha resposta. Ou antes:por mil pequeninas coisas que somam um total horrível e desolador. Olho para trás, e os tempos a que eu chamei desventurados, afiguram-se-me hoje auéreos, suaves e benéficos. Diante de mim, a estrada vai pouco a pouco estreitando-se, emaranhando-se, perdendo o arvoredo frondoso que a abrigava do sol e do vento. E eu cada vez mais me convenço que não saberei resistir ao temporal desfeito- à Vida, em suma, onde nunca terei lugar.Vê você, eu sofro porque sinto próxima a hora em que o recreio vai acabar, em que é forçoso entrar para as aulas. Talvez não me compreenda nestas palavras, mas eu não tenho paciência nem força para lhe falar mais detalhadamente. Em suma, não creio em mim, nem no meu curso, nem no meu futuro. Já tomei várias decisões desde que aqui estou e um dia senti, na verdade senti cheio de orgulho, que me chegara finalmente a força necessária para desaparecer. Ilusão dourada! Na manhã seguinte essa força remediável tinha desaparecido. E então resolvi voltar para Lisboa, sepultar dentro de mim ambições e orgulhos. Mas não tive também força para o fazer. Sorria-me Paris e, lá ao longe, um fiozinho de esperança que todas as aspirações dentro de mim me fizeram ver como um facho resplandecente. Desembriagado hoje, porém, observo desolado quanto esse fio é ténue. Mais uma vez fui fraco em resumo- adiei, e sempre boiando cá vou vivendo.Depois, no meio da minha angústia, pequeninas coisas se precipitam a exarcebá-la: A saudade de todas as coisas que vivi, as pessoas desaparecidas que estimei e que foram carinhosas para mim. Mas não é isto só: sofro pelos golpes que tenho a certeza hei-de vir a sofrer, como por exemplo, a morte fatal e próxima de algumas pessoas que estimo prigundamente e são idosas. E sofro ainda também, meu querido amigo, por coisas mais estranhas e requintadas- pelas coisas que não foram. De forma que numa tortura constante tenho vivido nestes últimos dias e cheguei mesmo a chorar uma noite- o que há tanto, desde os quinze anos, não me acontecia.(…)
Grande abraço do seu verdadeiro amigo

muito obrigado

Mário de Sá-Carneiro

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, incluída no livro “Mário de Sá-Carneiro Correspondência com Fernando Pessoa (Volume I)”
Imagem: O poeta português Mário de Sá-Carneiro. Um dos membros do grupo da revista Orpheu e amigo de Fernando Pessoa, apesar da morte prematura (por suicídio) deixou uma obra de poesia e prosa significativa, onde por vezes explora as técnicas literárias do futurismo.

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